sexta-feira, 5 de abril de 2013

On 18:29 by papa   1 comment

"Conhece-te a ti mesmo"


Quem assistiu o primeiro filme da série Matrix há de se lembrar da cena em que o herói, Neo, é levado pelo guia, Morfeu, para ouvir o oráculo. No filme há uma sibila, a mulher que recebeu o oráculo ( a mensagem ) e que é, ela também, o oráculo ( a transmissora da mensagem ). Essa mulher pergunta a Neo se ele leu o que está escrito sobre a porta de entrada da casa em que acabou de entrar. Ele diz que não. Ela lê para ele as palavras, explicando-lhe que são de uma outra língua, o latim.

O que está escrito? "Nosce te ipsum". O que significa? "Conhece-te a ti mesmo". O oráculo diz a Neo que ele e somente ele poderá saber se é ou não aquele que vai livrar o mundo do poder de Matrix e, portanto, somente conhecendo-se a si mesmo ele terá a resposta.
Poucas pessoas que viram esse filme compreendem exatamente o significado dessa cena. Ela é a representação, no futuro, de um acontecimento passado, ocorrido há cerca de 23 séculos, na Grécia.

Havia na cidade de Delfos, na Grécia antiga, um santuário dedicado ao deus Apolo, deus da luz, da razão e do conhecimento verdadeiro, o patrono da sabedoria. Sobre o portal de entrada desse santuário estava escrita a grande mensagem do deus ou o principal oráculo de Apolo: Conhece-te a ti mesmo. Um ateniense, chamado Sócrates, foi ao santuário consultar o oráculo, pois em Atenas, onde morava, muitos diziam que ele era um sábio, e ele desejava saber o que era um sábio e se ele poderia ser chamado de sábio. O oráculo, que era uma mulher ( a sibila ), perguntou-lhe: "O que você sabe?". E ele respondeu: "Só sei que nada sei". Ao que o oráculo disse: "Sócrates é o mais sábio de todos os homens, pois é o único que sabe que não sabe". Sócrates, como todos sabem, é o patrono da filosofia.

Se voltarmos ao filme Matrix, podemos perguntar por que ali foi feito o paralelo entre Neo e Sócrates. Comecemos pelo nome dos dois personagens, masculinos principais: Neo e Morfeu. Esses nomes são gregos. Neo significa "novo" ou "renovado" e, quando dito de alguém, significa "jovem na força e no ardor da juventude".

Morfeu - Morfeu
Morfeu pertence à mitologia grega: era o nome de um espírito, filho do Sono e da Noite ( Deveria ser brasileiro.. rs ) , que possuía asas e era capaz, num único instante  de voar em absoluto silêncio para as extremidades do mundo. Esvoaçando sobre um ser humano ou pousando levemente sobre sua cabeça, tocando-o com uma papoula vermelha, tinha o poder não só de fazê-lo adormecer e sonhar, mas também de aparecer-lhe no sonho, tomando a forma humana. É dessa maneira que no filme, Morfeu se comunica pela primeira vez com Neo, que desperta assustado com o ruído de uma mensagem na tela do seu computador. E, no primeiro encontro de ambos, Morfeu surpreende Neo por sua extrema velocidade, por ser capaz de voar e por parecer saber tudo a respeito desse jovem que não o conhece.
 Várias vezes Morfeu pergunta a Neo se este tem sempre a impressão de estar dormindo e sonhando, sem nunca ter certeza de estar realmente desperto. Essa pergunta deixa de ser feita a partir do momento em que, entre uma pílula azul e uma vermelha oferecidas por Morfeu, Neo escolhe ingerir a vermelha ( como a papoula da mitologia ), que o fará ver a realidade. É Morfeu quem lhe mostra a Matrix, fazendo-o compreender que passou a vida inteira sem saber se estava desperto ou se dormia e sonhava porque, realmente, esteve sempre dormindo e sonhando.

Neo - Sócrates
Por que as personagens do filme afirmam que Neo é o "escolhido"? Por que estão seguras de que ele será capaz de realizar o combate final e vencer a Matrix?
 Porque ele era um pirata eletrônico, alguém capaz de invadir programas, decifrar códigos e mensagens, mas sobretudo, porque ele também era um criador de programas de realidade virtual, um perito capaz de rivalizar com a própria Matrix? Essa interrogação o levou a vasculhar os circuitos internos da máquina, que começou a ser perseguido por ela, como um criminoso, e por essas incursões foi encontrado por Morfeu.

Por que Sócrates é considerado o  "patrono da filosofia"? Porque jamais se contentou com as opiniões estabelecidas com os preconceitos de sua sociedade, com as crenças não questionadas de seus conterrâneos  Ele costumava dizer que era impelido por um espírito interior ( como Morfeu instigando Neo ) que o levava a desconfiar das aparências e procurar a realidade verdadeira das coisas.
Sócrates andava pelas ruas de Atenas fazendo perguntas aos atenienses "O que é isso em que você acredita?", "O que é isso que você está fazendo?", "O que é isso que você está dizendo?". Os atenienses achavam, por exemplo, que sabiam o que era justiça. Sócrates lhe fazia perguntar de tal maneira que, embaraçados e confusos, chegavam à conclusão de que não sabia o que era a justiça, entre outras perguntas...
 A pergunta "O que é?" era o questionamento sobre a realidade essencial e profunda de uma coisa para além das aparências e contra as aparências. Com essa pergunta, Sócrates levava os atenienses a descobrir a diferença entre parecer e ser, entre mera crença ou opinião e verdade.
Sócrates era filho de uma parteira. Ele dizia que sua mãe ajudava no nascimento dos corpos e que ele também era um parteiro, mas não de corpos, e sim de almas. Assim como sua mãe lidava com a matrix corporal, ele lidava com a mental, auxiliando as mentes libertar-se das aparências e buscar a verdade.

Como os de Neo, os combates socráticos eram também combates mentais ou de pensamento. E enfureceram de tal maneira os poderosos de Atenas que Sócrates foi condenado à morte, acusado de espalhar dúvidas sobre as ideias e os valores atenienses e, com isso, corromper a juventude.
O paralelo entre Neo e Sócrates não está apenas no fato de que ambos são instigados por "espíritos" que os fazem desconfiar de aparências, nem apenas por ambos consultarem um oráculo e recebem como mensagem "conhece-te a ti mesmo", e nem mesmo porque ambos lidam com matrizes.

Podemos encontrá-lo também ao comparar a trajetória de Neo no interior da Matrix com um dos mais célebres escritos do Filósofo Platão, discípulo de Sócrates, Essa passagem encontra-se na obra intitulada A república e chama-se "O mito da Caverna". Porém ficaremos por aqui, pois o post ficará muuuito mais longo do que já está.. rs

Fonte: Iniciação à Filosofia (Marilena Chaui)

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